A história por trás da indústria farmacêutica que mais exporta medicamentos genéricos. Na luta anticolonial, as origens de uma política de independência frente aos laboratórios estrangeiros e solidariedade entre povos do Sul Global
por Guilherme Arruda, Outra Saúde
Nas eleições do ano passado, um dos pontos programáticos que selaram a aliança da candidatura de Lula com o movimento sanitarista foi sua defesa da retomada dos investimentos no complexo econômico-industrial da saúde (CEIS), um ousado projeto com potencial de ampliar a soberania sanitária e a justiça social no país. Grande produtor de matérias-primas essenciais como o petróleo, já possuidor de um parque relevante de indústrias farmacêuticas e com histórico de quebras de patentes para produção nacional de medicamentos, o Brasil já reúne as condições para se tornar uma referência mundial no setor, segundo diversos analistas.
Porém, com quase um ano de Palácio do Planalto sob nova direção, ainda não é possível dizer que o plano tenha avançado significativamente. Por um lado, a ação das autoridades ainda é tímida. Apesar da criação de um GT no início do ano, que já levou a anúncios de investimentos futuros ligados ao Novo PAC e a uma nova Estratégia Nacional de Desenvolvimento do CEIS, as medidas ainda estão por se materializar. Por outro, os desafios são mesmo grandes. Para que tenha êxito, é preciso que esta seja uma política não de governo, mas de Estado, pensada a longo prazo.
Essa afirmação pode ser comprovada ao se observar a trajetória de países do Sul Global que tomaram para si o desafio de pôr de pé uma indústria farmacêutica própria – enfrentando ao mesmo tempo a força das corporações multinacionais e as debilidades internas de seus Estados. Um dos exemplos mais claros é o da Índia. Dados recentes apontam que o país asiático é o maior exportador de genéricos e possui hoje a nona maior indústria farmacêutica do globo – a segunda maior do Terceiro Mundo, só atrás da China, e com o dobro do tamanho da indústria brasileira.
Mas, como explica agora Outra Saúde em uma série de matérias sobre a história da produção de fármacos no Sul Global, a indústria indiana não se fortaleceu apenas com uma hábil condução econômica – suas origens estão em uma orientação política terceiro-mundista e de horizonte emancipatório promovida por governantes como Jawaharlal Nehru e Indira Gandhi no século XX. No centro dessa estratégia, dois pilares: a ênfase na produção nacional dos dos medicamentos e a prioridade aos genéricos, mais acessíveis aos indianos e aos povos dos países em desenvolvimento.
Para além da emancipação formal
A independência da Índia, conquistada em 1947, foi levada a cabo com fortes influências progressistas e anticoloniais. Jawaharlal Nehru, herdeiro político de Mahatma Gandhi e de seu partido, o Congresso Nacional Indiano (INC), governou o país durante suas primeiras duas décadas pós-emancipação e foi uma das principais lideranças do Movimento Não-Alinhado, grupo que buscava maior independência para os países em desenvolvimento frente às grandes potências em meio à Guerra Fria.
Nesse espírito de dar fim à relação subalterna com as nações mais ricas, a produção autônoma de remédios – até hoje concentrada no Norte Global – se tornou um dos objetivos de Nehru. O líder indiano insistia ainda que seria estratégico que o Estado tivesse preponderância no setor farmacêutico a ser criado. “Penso que uma indústria dessa natureza não pode estar em mãos privadas de forma alguma, pois há muita exploração contra o povo nesse setor”, chegou a afirmar o então primeiro-ministro da Índia.
“Naquele contexto pós-colonial, as questões de abastecimento nacional de fármacos convenciam até mesmo setores mais conservadores da sociedade indiana, por serem vistas como uma questão também de soberania”, explica Vitor Ido, pesquisador do South Centre em Genebra e especialista em patentes farmacêuticas no contexto global, ao Outra Saúde. “Sempre foi visto como uma política de saúde, soberania e independência em relação aos laboratórios estrangeiros, países estrangeiros e a lógica de doações. Também se via o potencial econômico, sem dúvida”, ele continua.
Um importante primeiro passo tomado pelo governo indiano no sentido de orientar de forma soberana a política de fármacos foi a promulgação do Essential Commodities Act (ou Lei dos Produtos Essenciais) em 1955, que definiu que o Estado estaria no controle da “produção, suprimento e distribuição” dos medicamentos “para assegurar a distribuição equitativa e o acesso a preços justos”.
Inicialmente, reconta Ido, as estruturas do tímido parque industrial deixado pela colonização britânica foram reaproveitadas para a criação das primeiras farmacêuticas indianas. Mas na sequência, no início dos anos 1960, a Índia também criou cinco empresas estatais no setor, entre elas a Indian Drugs and Pharmaceuticals (IDPL).
As fábricas da IDPL, futuramente, produziriam fármacos como a tetraciclina, a doxiciclina e a cloroquina, decisivos, respectivamente, para o enfrentamento de emergências sanitárias como o surto de peste bubônica em 1994, o surto de leptospirose em 2005 e o combate de décadas contra a malária. Por outro lado, ressalta Ido, “a grande característica na Índia são as grandes indústrias privadas trabalhando em cooperação com o governo”, e apesar de importantes, as empresas públicas não chegaram a ser majoritárias no setor farmacêutico.
De forma combinada, o governo de Nehru também investiu na construção de centros de pesquisa que formassem quadros técnicos e desenvolvessem inovações para a indústria, como o Instituto Nacional de Educação e Pesquisa Farmacêutica (NIPER, na sigla em inglês). “Os laboratórios públicos tiveram um papel na Índia, ainda que o dos nossos no Brasil, como o Butantã e a Fiocruz, seja maior comparativamente”, avalia o pesquisador do South Centre.
Enfrentando as patentes
Na Assembleia Mundial da Saúde de 1981, Indira Gandhi, filha e sucessora política de Nehru que governou quase ininterruptamente de 1966 a 1984, fez um discurso muito lembrado por ativistas da luta pelo acesso igualitário a medicamentos. Nele, ela afirmou que sua “ideia de um mundo melhor seria a de um mundo onde não se lucra com a vida e a morte” por meio do comércio de medicamentos.
Seguindo essa visão, durante seus mandatos, a política de soberania sanitária iniciada por seu antecessor passou por um aprofundamento. Nesse novo ciclo político, o principal alvo dos governos da Índia passou a ser a menina dos olhos das corporações transnacionais, fonte de seus maiores lucros: as patentes de remédios.
Em 1966, poucos meses depois de ascender ao poder, Gandhi deu o primeiro sinal de sua opção por políticas que garantissem medicamentos mais acessíveis. Naquele ano, a primeira-ministra emitiu a primeira Ordem de Controle dos Preços de Medicamentos (DPCO, em inglês), que reduziu drasticamente o custo dos fármacos. A Índia já possuía à época a segunda maior população do mundo, com 450 milhões de habitantes, e ainda se recuperava economicamente de séculos de espoliação colonial: o amplo acesso aos remédios essenciais para atender toda a população era simplesmente inviável com os preços praticados até então pelas multinacionais farmacêuticas. Essas ordens governamentais “garantiram preços muito mais baixos, inclusive em termos proporcionais ao poder de compra”, avalia Ido.
Em 1970, a primeira-ministra promulgou uma nova DPCO, renovando o controle estrito dos preços dos medicamentos, e sancionou aquela que seria a lei mais importante da construção da indústria farmacêutica na Índia: o Indian Patent Act, ou Lei das Patentes Indianas, que regulamentou de forma bastante estrita o direito patentário no país – contendo diversas previsões que dificultam enormemente a concessão de patentes indevidas que prejudiquem a população para manter monopólios das farmacêuticas.
Ali, ganhou força um traço que, com algumas alterações, daria os contornos da política farmacêutica indiana pelas próximas décadas: a ênfase nos genéricos. Com as restrições às patentes, o setor público e o empresariado nacional puderam produzir em larga escala e a preços bem mais baixos os medicamentos que o governo sentia serem necessários no momento – em especial, os que tratam as doenças que afetam mais gravemente os países pobres. Como consequência, 4 das 10 maiores empresas que produzem genéricos do mundo são indianas.
Segundo o advogado e pesquisador do South Centre, o trecho mais polêmico da lei é o ponto D da sessão 3. A “sessão 3D”, como é conhecida a passagem, afirma que não é uma “invenção patenteável” a “mera descoberta de uma nova forma, uma nova propriedade ou um novo uso de uma substância já conhecida”. Com essa decisão, a Índia bloqueou a prática recorrente da indústria farmacêutica de solicitar novas patentes para cada pequeno avanço tecnológico, estendendo indefinidamente os lucros com fármacos que estão há décadas no mercado.
Como consequência dessas medidas, em 1982, segundo um estudo de Heather L. Taylor, a indústria farmacêutica nacional da Índia já ocupava 52% do mercado doméstico – logo após a independência, essa cifra chegou a ser de menos de 10%.
Além disso, diz Vitor Ido, é nesse momento que o país começa a ser apelidado como “a farmácia do Terceiro Mundo”, pois suas exportações para as nações africanas e asiáticas garantem que esses países sigam abastecidos com remédios que não seriam adquiridos nos preços impostos pelas farmacêuticas. Isso se conectaria com “uma visão mais estratégica de Estado sobre saúde pública e preços acessíveis para o povo indiano e do Terceiro Mundo, numa lógica de não alinhamento”, ele conclui.
Mudanças à vista
Nos anos 1980, com o esgotamento do ciclo de governos de viés terceiro-mundista do Congresso Nacional Indiano, a indústria farmacêutica do país tomou novos rumos. Seguiu se fortalecendo, mas com características diversas. Entre elas, a preponderância crescente de grandes conglomerados privados.
De acordo com Ido, a mudança correu em paralelo à ascensão do neoliberalismo e às reconfigurações do cenário geopolítico global – e ele aponta que esses novos fatores devem ser levados em consideração até mesmo pelo governo brasileiro ao desenhar seus planos para o desenvolvimento do complexo econômico-industrial da saúde.
Mas ele lembra também que, por outro lado, os governos indianos não abriram mão de sua bandeira histórica de acesso aos medicamentos, mantendo os incentivos aos genéricos. Durante as negociações do TRIPS (o acordo que instituiu a nível global as patentes farmacêuticas, assinado em 1994), a Índia foi um dos Estados que mais batalhou contra os planos dos países ricos de incluir no tratado diversas cláusulas que garantiriam as taxas de lucros das corporações farmacêuticas por meio de concessões e extensões injustas de patentes.
Em reportagem subsequente, Outra Saúde apresentará a decisiva opção indiana nos anos 1990 por utilizar ao máximo as chamadas “flexibilidades do TRIPS”, chave para a continuidade da produção massiva de genéricos.
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Foto: Prashanth Vishwanathan